Quem pode mais, chora menos: A dinâmica de poder nos reassentamentos da Anglo American

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Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, vive uma situação histórica, importante, delicada e controvertida, com a assinatura dos programas de reassentamento das comunidades centenárias de São José do Jassem, Passa Sete, Água Quente e Beco e, também, da comunidade do Gondó.

O primeiro programa decorre de decisão proferida no âmbito de Ação Civil Pública, movida pelo Ministério Público, em razão do risco de rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Anglo American, e tratava, originariamente, das três primeiras comunidades, tendo-se estendido, posteriormente, às demais. A sentença foi proferida em 2023 e, ao longo do ano de 2024, várias reuniões se realizaram com debates e polêmicas, rendendo-se, por fim,as comunidades ao medo e à força.

Do ponto de vista da empresa, pretende-se que soe como um plano aplicável a outros casos, um marco, um precedente. Mas esse é só um lado da história.

Assinado o acordo, em dezembro, o plano beneficiou apenas os moradores da Zona de Auto Salvamento (ZAS),deixando de atender a outros comunitários igualmente impactados, contrariando a sentença, a lei e a vida real.

O segundo programa, apresentada à comunidade do Gondó, também em Conceição do Mato Dentro, foi construído com base no primeiro, com algumas ressalvas, aceitando a comunidade o que lhes foi apresentado, diante da inviabilidade de discutir, uma vez que enfrenta problemas do dia a dia, impossíveis de solucionar: ainda assim, a comunidade do Gondó, que vive uma realidade de profundos impactos, também terá apenas parte de seus comunitários reassentados

Os programas de reassentamento promovidos pela Anglo American para essas comunidades tradicionais e centenárias, em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, revelam um panorama alarmante de desestruturação social, perdas patrimoniais e violação de direitos. Sob o pretexto de cumprimento mínimo de obrigações legais, e com foco na obtenção de licença ambiental para alteamento da barragem, a mineradora adotou medidas que favorecem exclusivamente seus interesses empresariais, relegando as comunidades afetadas a uma situação de vulnerabilidade extrema.

No caso do reassentamento da comunidade de Gondó, as condições foram ainda mais desfavoráveis. A empresa utilizou a precariedade existente para impor soluções que ignoram os princípios de dignidade, participação ativa e reparação integral previstos pela legislação nacional e internacional.

Ao longo de décadas, essas comunidades construíram uma rica trama social baseada em laços familiares, culturais e econômicos. Esses territórios não são apenas espaços geográficos, mas representações vivas de histórias, tradições e modos de vida autossustentáveis. Laços dos mais diversos matizes, formados ao longo de várias décadas, mais de século.

O reassentamento, no entanto, desconsiderou a integralidade dessas relações, desmantelando redes de apoio, desvalorizando propriedades e extinguindo mercados locais. A decisão da Anglo American de limitar os reassentamentos aos moradores localizados na Zona de Auto Salvamento (ZAS) foi uma medida que contradiz o princípio da reparação integral preconizado pela Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e os padrões da International FinanceCorporation (IFC). Ao não atender às necessidades de todos os comunitários impactados, a mineradora violouseus direitos e perpetuou um ciclo de exclusão social e econômica.

É impossível, hoje, dimensionar as perdas sofridas pelos comunitários, mas o medo do futuro paira sobre todos. Para os reassentados, um auxílio financeiro provisório e um programa que só tem nome, mas não tem critérios, fases, planos concretos. É apenas uma promessa.

Já o reassentamento da comunidade de Gondó ilustra uma situação ainda mais grave.

Essa comunidade se avizinha, atualmente, das atividades minerárias do empreendimento e sofre todas as consequências dos impactos produzidos pela mineradora e sua expansão empresarial.

Enfrentando um cenário de degradação extrema — com falta de água potável, infraestrutura básica, ruídos constantes e trepidações das operações da mineradora —, os moradores do Gondó foram conduzidos a aceitar um plano de reassentamento que ignorava suas demandas fundamentais, sua história, suas perspectivas.

O caos vivido pela comunidade foi habilmente explorado pela Anglo American, que utilizou o desespero como instrumento para forçar soluções inadequadas. A proposta apresentada inclui compensações financeiras insuficientes, dispersão dos comunitários e programas complementares com escopo limitado. Tal abordagem não respeitou os laços sociais e culturais da comunidade, transformando o reassentamento em um ato de sobrevivência mutilada, em vez de um processo digno e reparador.

A PNAB – Lei 14.755/2023 e os padrões da IFC estabelecem diretrizes claras para projetos de reassentamento, incluindo reparação integral, consulta livre, prévia e informada, e a preservação dos laços comunitários. Os programas da Anglo American, porém, falharam em atender a esses princípios.

As negociações foram marcadas por falta de clareza dos direitos e objetivos e por pressões para aceitação de condições desfavoráveis. A par do acompanhamento por Assessoria Técnica Independente, que buscou a todo o tempo as melhores formas de informação, a ciência perfeita das condições pelos comunitários, as suas condições de vida e suas realidades lhes dificultavam a compreensão exata da situação que enfrentavam. Não houve, portanto, um consentimento livre e consciente, necessário ao bom êxito e justiça das negociações.

Além disso, o medo: o medo faz ceder às pressões de quem detenha poder e o mínimo passa a ser um ganho, porque não há força suficiente para lutar por mais; e menos que o mínimo é nada, é o desamparo.

Quem sai vai iludido; quem fica resta desamparado.

Além disso, as medidas compensatórias propostas não asseguraram um futuro sustentável para os reassentados nem respeitaram os vínculos comunitários. Os programas sociais são vagos.

As perdas enfrentadas pelas pessoas não reassentadas abrangem desvalorização de propriedades, redução ou extinção de fontes de renda, infraestrutura inadequada nos territórios, ruptura de laços sociais e culturais, isolamento social.

Há o trauma psicológico decorrente da perda de identidade comunitária para todos, quem fica e quem vai, tanto na origem quanto no destino; e degradação do ecossistema local é inevitável, impactando diretamente as atividades de subsistência.

Para reverter o quadro de exclusão e vulnerabilidade, é fundamental que as autoridades responsáveis implementem medidas que promovam a participação ativa das comunidades em todas as decisões futuras e nos mecanismos de controle dos compromissos assumidos. Ou tudo cairá no esquecimento.

É indispensável que haja fiscalização efetiva por órgãos competentes e monitoramento constante para garantir que as soluções sejam adequadas às necessidades reais dos atingidos, não se podendo perder de vista a urgência das medidas a serem adotadas.

Os programas de reassentamento da Anglo American acabaram por expor um dilema que ultrapassa os limites de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas: a relação desigual entre interesses empresariais e direitos comunitários.

Para as comunidades afetadas, as consequências já são devastadoras, com impactos irreversíveis sobre seu tecido social e econômico. É fundamental que a sociedade e o poder público se mobilizem para exigir soluções que transcendam os mínimos legais, garantindo dignidade e justiça para aqueles que pagam o preço mais alto pela exploração mineral. O futuro dessas comunidades não pode ser negligenciado; ele deve ser reconstruído com base em princípios de equidade, respeito e sustentabilidade.

Mariana Santos e Márcia Itaborahy
Mariana Santos e Márcia Itaborahy

MM Advocacia Minerária

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