Direito fundamental de todo brasileiro, a água é essencial à vida em todas as suas formas, transcendendo sua condição de recurso natural para assumir uma posição central na manutenção da dignidade humana. A evolução do ser humano está intrinsecamente ligada ao acesso e à gestão da água.
Desde as primeiras civilizações, que se estabeleceram próximas a rios e lagos, a água tem sido um motor de desenvolvimento econômico, social e cultural. O controle e o uso adequado da água permitiram avanços na agricultura, no saneamento e na saúde pública, contribuindo para a construção de sociedades complexas e prósperas.
No entanto, a relação do homem com a água também trouxe desafios, como a necessidade de equilibrar o desenvolvimento com a preservação dos recursos hídricos.
Em um mundo onde a escassez de água é uma realidade cada vez mais premente, compreender e proteger esse recurso vital é imperativo não apenas para a sobrevivência, mas também para a justiça social e a sustentabilidade ambiental.
Ao longo deste mês dedicado ao Meio Ambiente, temos trazido reflexões sobre a água, seu uso, sua importância e a necessidade urgente de atenção e cuidado.
Este texto explora a água sob a perspectiva de um direito humano fundamental e discute os desafios e oportunidades na gestão sustentável deste recurso estratégico e sua importância como instrumento de dignidade do ser humano.
A água potável e acessível não deve ser vista como uma mercadoria, mas como um direito inalienável. Este reconhecimento impõe ao Estado a obrigação de assegurar que todos os cidadãos tenham acesso a uma quantidade mínima de água de boa qualidade, indispensável para a saúde, a alimentação e a higiene.
Estamos diante da certeza de que a escassez de água é um problema global exacerbado por mudanças climáticas, poluição, crescimento populacional e uso insustentável dos recursos.
Regiões como o Rio Grande do Sul, enfrentando enchentes devastadoras, evidenciam a urgência de políticas eficazes de gestão das águas pluviais e resiliência climática.
Globalmente, a pressão sobre os aquíferos subterrâneos, como o Alter do Chão (Região Norte do Brasil – parte do Amazonas, Pará e Amapá) e o Guarani (Região sul do Brasil – abrange Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), ressalta a necessidade de uma gestão integrada e sustentável.
Esses reservatórios, vitais para a segurança hídrica e a biodiversidade, estão ameaçados pela contaminação e superexploração, exigindo uma governança rigorosa e cooperativa.
A par de se considerar com recurso estratégico, de gestão estratégica para todo o planeta, a discussão sobre a mercantilização da água é uma questão central e complexa, que coloca em evidência a tensão entre tratar a água como uma mercadoria valiosa e reconhecê-la como um direito humano fundamental. A água, como recurso essencial para a vida, possui um valor econômico inegável. No entanto, sua comercialização pode criar barreiras ao acesso equitativo, exacerbando a exclusão social e econômica.
A gestão da água
Tratar a água como uma mercadoria significa que ela é vista principalmente pelo seu valor econômico, sujeita às leis de oferta e demanda do mercado. Esse ponto de vista considera a água um bem negociável, onde seu preço é determinado pelo mercado, e onde o acesso pode ser limitado pela capacidade de pagamento. A mercantilização pode levar à privatização dos serviços de abastecimento de água, onde empresas privadas controlam a distribuição e a venda deste recurso vital. Uma visão antiética e desumana.
A principal crítica à mercantilização da água é que ela conflita diretamente com o reconhecimento da água como um direito fundamental. A água é indispensável para a vida e a dignidade humana, e o acesso a ela não se pode admitir ser restringido por considerações econômicas.
Quando a água é tratada como mercadoria, aqueles que não têm capacidade financeira para pagar por ela podem ser excluídos, resultando em graves desigualdades sociais, conflitos severos e problemas de saúde pública.
A gestão pública da água torna-se ferramenta eficaz para a sustentabilidade e visa garantir que este recurso essencial seja acessível a todos, independentemente de sua condição socioeconômica.
Isso é particularmente importante em contextos onde a desigualdade é alta e muitas pessoas vivem em condições de pobreza, sem água potável e sem saneamento básico. A gestão pública deve assegurar que a água seja distribuída de maneira justa e equitativa, priorizando o direito humano à água sobre os interesses econômicos.
Para evitar a exclusão social e econômica, são necessárias políticas públicas robustas que regulem o uso e a distribuição da água. Isso inclui a implementação de tarifas sociais que garantam o acesso aos serviços de água e saneamento para as populações mais vulneráveis. Além disso, é fundamental a criação de regulamentações que limitem a exploração e o desperdício da água, promovendo seu uso sustentável e responsável.
De outro lado, há diversos exemplos de como a privatização dos serviços de água pode levar a aumentos significativos nas tarifas, tornando a água inacessível para os mais pobres.
Em países como Bolívia e Gana, a privatização resultou em um aumento drástico nas tarifas de água, afetando principalmente as populações de baixa renda. Esses casos demonstram que a mercantilização pode agravar as desigualdades existentes, ao invés de promover um acesso equitativo.
Essa abordagem mercantilista também pode intensificar conflitos pela água, especialmente em regiões onde o recurso é escasso. A competição pelo controle e uso da água pode levar a tensões sociais e políticas, exacerbando a instabilidade e a injustiça. A água deve ser gerida de forma a evitar tais conflitos, assegurando que seu uso beneficie a todos de maneira justa e sustentável.
Na verdade, a mercantilização da água apresenta um dilema ético e prático significativo. Embora se deva reconhecer seu valor econômico, é essencial que a água seja tratada principalmente como um direito humano fundamental.
A gestão pública e a regulação adequada são, assim, essenciais na garantia de que todos tenham acesso a este recurso vital, evitando a exclusão social e econômica. Essa proteção do direito à água deve ser uma prioridade, promovendo a justiça social e a dignidade humana em um mundo onde a água é um recurso cada vez mais precioso e escasso.
A implementação de políticas integradas de gestão dos recursos hídricos é essencial para proteger nossas fontes de água potável. Isso inclui regulamentações rigorosas sobre o uso da água, programas robustos de monitoramento da qualidade, e a adoção de tecnologias sustentáveis.
Do ponto de vista do direito internacional, a cooperação transfronteiriça entre países que compartilham aquíferos é essencial para garantir uma gestão equitativa e eficiente. As políticas de reuso de água e melhorias na infraestrutura para irrigação e saneamento são fundamentais para promover a eficiência hídrica e reduzir o desperdício.
Para todos, a educação ambiental desempenha um papel vital na conscientização sobre a importância da água. Iniciativas que promovem o consumo responsável e a preservação dos recursos hídricos são indispensáveis para assegurar que futuras gerações possam desfrutar deste bem essencial.
A sensibilização sobre a crise hídrica e a importância dos aquíferos subterrâneos deve ser ampliada para engajar a sociedade em práticas de uso sustentável da água.
A seu turno, a gestão sustentável da água exige a aplicação rigorosa dos princípios constitucionais da precaução, prevenção e responsabilidade social.
O princípio constitucional da precaução orienta a adoção de medidas preventivas diante da incerteza sobre os impactos ambientais, enquanto o princípio da prevenção busca evitar a ocorrência de danos ambientais.
A responsabilidade social, por sua vez, reforça o dever de todos os atores sociais de contribuir para a preservação dos recursos hídricos, promovendo práticas que assegurem a sustentabilidade e a equidade no uso da água. O princípio da equidade intergeracional é enfatizado, destacando a responsabilidade das gerações atuais em preservar os recursos hídricos para o futuro.
A ausência explícita do direito de acesso à água potável na Constituição Brasileira não chancela qualquer interpretação que a exclua como direito fundamental, ao contrário: por meio da cláusula de abertura constitucional (§2º do artigo 5º), é possível reconhecer direitos fundamentais não expressos, mas que decorrem do regime democrático, dos princípios constitucionais e dos tratados de direitos humanos. Esses direitos são considerados materialmente fundamentais, mesmo que não estejam formalmente explicitados na Constituição.
Neste contexto, o direito de acesso à água potável é analisado a partir do conteúdo de outros direitos fundamentais já expressos na Constituição, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), o direito à vida (artigo 5º), e os direitos sociais à saúde, moradia e alimentação (artigo 6º). A fundamentalidade desse direito pode ser justificada pela interdependência e inter-relação com esses outros direitos. Os direitos à saúde, moradia e alimentação estão intrinsecamente ligados ao acesso à água potável, que é fundamental para a higiene, a produção de alimentos e a qualidade de vida. No mesmo sentido, o direito ao meio ambiente saudável.
Fácil concluir que o direito à água está intrinsecamente ligado ao direito à vida e à dignidade humana. E tal conclusão também faz parte do ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988 e diversos tratados internacionais reconhecem a água como essencial para garantir uma vida digna.
A análise de um mínimo existencial ambiental destaca que o direito de acesso à água potável deve ser garantido para assegurar um padrão mínimo de qualidade de vida, essencial à dignidade humana. O conceito de mínimo existencial não se limita à sobrevivência física, mas inclui condições que permitam uma vida digna e saudável. Em tal circunstância, há premente necessidade de atuação efetiva do Poder Público para a garantia dos direitos dos cidadãos e da dignidade da vida humana.
Assim, deste modo, a Constituição garante o direito de acesso à água potável, enquanto direito fundamental implícito, que tem aplicabilidade imediata, conforme o artigo 5º, §1º da Constituição Brasileira. Isso significa que o Estado deve adotar medidas imediatas e eficazes para garantir esse direito a todos os cidadãos, sem discriminação.
A abordagem integradora do texto constitucional, que considera a interdependência entre diversos direitos fundamentais, é essencial para promover a justiça social e garantir a dignidade humana. A proteção jurídica e a implementação de políticas públicas eficazes são fundamentais para assegurar o acesso universal e sustentável à água, enfrentando os desafios contemporâneos relacionados à gestão dos recursos hídricos e à preservação ambiental.
Com essa abordagem é que a água, em sua essencialidade, transcende o âmbito da sobrevivência para incorporar-se ao cerne da dignidade humana. A proteção e gestão sustentável deste recurso não são apenas uma responsabilidade coletiva, mas um imperativo moral e ético. A abordagem integrada, multidisciplinar e colaborativa é importantíssima para garantir que todos tenham acesso à água potável, preservando a integridade ambiental e promovendo a justiça social.
Ao tratar a água como um direito fundamental e um bem comum, reforçamos nosso compromisso com um futuro sustentável e equitativo, onde a dignidade de cada indivíduo é respeitada e garantida.