A Assessoria Técnica Independente da Fundação Israel Pinheiro (ATI/FIP) que acompanha o processo de descaracterização da barragem de rejeitos do Sistema Pontal, em Itabira, vem questionando a mineradora Vale sobre a falta de transparência e truculência nas ações que afetam a comunidade.
Na última segunda-feira (22), a mineradora anunciou que dará início às obras preliminares para a construção da segunda Estrutura de Contenção a Jusante (ECJ2) no Sistema Pontal. A previsão é de que a obra seja concluída no primeiro semestre de 2025.
Porém, para que a construção da nova estrutura seja feita, a mineradora precisará remover 17 famílias; demolir casas; criar vias de acesso; cortar vegetação; mudar trechos do sistema de esgoto de lugar; entre diversas outras ações que impactam diretamente na vida da população.
De acordo com a ATI, entre os muitos problemas causados pelas obras relacionadas ao Sistema Pontal, há ainda uma série de violações de direitos que vêm sendo relatadas pelos moradores. “Até hoje, a Vale não informou um plano para mitigar os impactos sociais, psicossociais e de segurança pública às centenas de pessoas que ficarão nas comunidades dos bairros Bela Vista, Nova Vista, Jardim das Oliveiras e Praia e que se tornarão vizinhas à estrutura de concreto e aço”, questiona a ATI.
Por conta dos problemas, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) determinou que a Assessoria Técnica Independente, no âmbito de uma ação civil pública, trabalhe para auxiliar as pessoas atingidas na busca por reparações individuais e coletivas pelos danos causados pela mineradora. A ATI/FIP vem catalogando os modos de vida dessas pessoas, “na intenção de demonstrar uma clara violação de direitos causada pelos impactos das ações da Vale”.
A assessoria destaca que, entre os registros já feitos, boa parcela das pessoas atingidas dos bairros Bela Vista e Nova Vista recriaram, próximo às suas casas, o ambiente em que viveram antes de se tornarem moradores da região. “É importante lembrar que muitas dessas pessoas são remanescentes das remoções promovidas pela empresa na região conhecida como Vila Camarinha, na década de 1980. A prática de retirar pessoas de áreas de interesse de exploração da Vale, em Itabira, não é uma novidade”, esclarece a ATI.
ATI identifica vínculos históricos
Para contextualizar a área onde as obras de descaracterização estão sendo realizadas, a assessoria explica que a Camarinha era um povoado que se iniciou nos anos 1950, com aproximadamente cinco famílias, passando por um “boom populacional” após a corrida garimpeira no município. Em 1980, depois do fechamento do garimpo, muitas famílias permaneceram em Itabira e, sem recursos, acabaram se estabelecendo na Camarinha, com auxílio da Prefeitura.
A ATI cita relatos dos antigos residentes e um estudo realizado pela Biogea Engenharia Ambiental, em 2015, a pedido da Vale, dando conta de que as casas eram de pau a pique, casqueiros e lona; não tinham banheiro, nem redes elétricas; e o abastecimento de água era precário.
“Ainda assim, em 1988, a mineradora correu atrás da unificação de suas minas através do terreno “Minas do Meio”, justamente onde estava a Camarinha. Dessa maneira, uma permuta entre Prefeitura de Itabira e Vale, conforme a Lei 3.495, garantiu à empresa a posse do terreno da Camarinha. Em troca, a mineradora deu para a prefeitura 25 áreas em diversos pontos da cidade, somando aproximadamente 840 mil m²; o terreno denominado “Nova Vista”, com 25 mil m², para instalação das famílias removidas da Camarinha; e o valor de Cz$ 100 mil (cem mil cruzados) para a compra de material de construção para o assentamento das famílias”, descreve a ATI.
Ainda conforme divulgado pela ATI, a Prefeitura organizou mutirões de construção das casas em que os próprios moradores atuaram como mão-de-obra. Cada família recebeu 32m² de área construída, num lote de 150m². A urbanização do bairro foi sendo feita ao mesmo tempo que as casas eram construídas. O documento ressalta que “nos dias atuais, as casas são de estrutura em alvenaria e acabamentos simples, não dispõem de grandes quintais”.
Restauração dos modos de vida
A ATI descreve que as pessoas remanescentes da Camarinha, na tentativa de recriar os modos de vida que levavam em sua antiga vila, buscaram por alternativas viáveis dentro de suas novas realidades, diante do pouco espaço destinado após as remoções. A partir daí, desenvolveram cultivo de hortas e pomares, incluindo dentro dos terrenos da mineradora situados muito próximas às residências.
Os moradores relatam que os espaços estavam se transformando em lixões e eram utilizados como depósitos de entulho. Relatam, ainda, que a incidência de animais peçonhentos, como cobras e escorpiões, era muito grande. Por iniciativa própria, passaram a promover a recuperação do seu modo agrário e a prestar serviços ambientais.
A pesquisa aponta que houve uma reversão do processo de degradação ambiental que estava em curso, gerando benefícios econômicos e de imagem para a Vale, proprietária da área, em tese responsável pela manutenção das condições de salubridade do local.
Ainda de acordo com as investigações da ATI, na medida em que as hortas foram sendo criadas, os terrenos foram limpos. Os próprios moradores investiram em material para cercar as áreas que iriam usar. As primeiras hortas foram criadas em 2013, segundo as tomadas de termo realizadas pela ATI/FIP, e desde então se mantêm “com delimitações por estacas; arame farpado; portões com cadeado; telas de proteção; canteiros; pequenas benfeitorias para abrigar ferramentas e insumos; e viveiros de mudas”.
Ocupação pacífica
A pesquisa realizada pela ATI aponta que mais de 30 hortas foram catalogadas, sendo todas elas localizadas em ocupações no terreno da Vale. A assessoria destaca, ainda, que os proprietários nunca foram notificados pela mineradora sobre a ocupação e que não há qualquer tipo de processo legal em relação à restituição de posse, o que indica que a ocupação é “mansa e pacífica”.
A ATI/FIP ainda confirmou que os proprietários dos plantios investem na compra de terra, sementes, adubo e fertilizantes para plantar vários tipos de hortaliças, verduras, legumes, plantas medicinais, árvores frutíferas e grãos, para subsistência. A assessoria ainda caracteriza o espaço como meio de fortalecer a malha social das pessoas atingidas residentes nos bairros Bela Vista e Nova Vista, sendo que os relatos desses moradores comprovam uma dependência emocional desses espaços e uma relação profunda com um passado que lhes foi tirado.
“Agora, a construção das vias de acesso ao local que receberá a ECJ2, despertou nos proprietários das hortas o temor de ver esses modos de vida serem subtraídos novamente. Para resguardar os direitos dessas pessoas, a ATI/FIP notificou o Ministério Público com um dossiê formado por tomadas de termo com os relatos dos atingidos e relatórios fotográficos que demonstram a existência deles nas áreas que ocupam. A promotoria, por sua vez, recomendou à mineradora que se posicione sobre esta situação, já que envolve área de sua propriedade e aguarda por uma resposta”, descreve a ATI.
A ATI/FIP aponta como caminho para resolver a questão a indenização individual a cada uma das famílias pelas benfeitorias realizadas durante a posse dos terrenos, e ainda, “a possibilidade de uma reparação coletiva que incluiria medidas como a criação de hortas coletivas e espaços de geração de renda”.
A Vale foi procurada pelo Cidades & Minerais, mas ainda não se posicionou sobre os questionamentos da ATI/FIP. A reportagem será atualizada, caso haja manifestação.