O colapso de barragens é um dos fenômenos mais devastadores que a atividade minerária pode produzir. Mas, para além dos rompimentos efetivos — como os que marcaram tragicamente Mariana e Brumadinho — existe uma violência mais silenciosa e insidiosa: o terrorismo de barragem.
O terrorismo de barragem é o medo institucionalizado. É a incerteza cotidiana transformada em ferramenta de dominação social e econômica. É o estado permanente de alerta, a convivência obrigatória com a possibilidade da morte súbita, da perda do lar, da ruptura dos modos de vida. E, muitas vezes, é a estratégia não declarada para forçar deslocamentos, desmobilizar resistências e naturalizar a degradação de territórios e comunidades.
O conceito de terrorismo de barragem vai além da negligência técnica. Ele se estrutura na política do risco aceito e administrado. Como adverte Ulrich Beck em sua teoria da “sociedade do risco”, vivemos uma era em que os perigos são fabricados socialmente — e sua gestão, muitas vezes, recai desproporcionalmente sobre os mais vulneráveis.
No Brasil, Minas Gerais e o Pará tornaram-se ícones dessa violência estrutural. Em Mariana, as sirenes que não tocaram escancararam a falência da proteção oficial. Em Brumadinho, o tempo entre o disparo da sirene e a devastação total foi curto demais para salvar vidas. Em outros tantos casos, o sistema de alerta — quando existe — serve mais para criar uma aparência de controle do que para garantir segurança real.
Em Minas Gerais e no Pará, o drama das comunidades situadas nas zonas de autossalvamento de barragens minerárias ilustra com crueza essa realidade. O medo constante — de rompimentos, de desastres súbitos, da morte silenciosa — transforma o território em campo de tensão permanente, desterritorializando populações sem a necessidade de deslocamento físico. É a criação de espaços de morte simbólica, em que o direito de habitar com dignidade é sistematicamente violado.
A sirene toca, a sirene não toca: o terrorismo de barragem impõe às comunidades uma vida suspensa. As pessoas vivem sob a sombra do rompimento possível, em processos de deslocamento forçado psicológico: já não habitam plenamente seus territórios, mesmo sem terem saído fisicamente deles. É a violência da incerteza cotidiana, do futuro negado, da relação de confiança quebrada entre o sujeito e a terra.
O medo é contínuo: sirenes, tremores de terra, aumento de poeira, escassez hídrica e a percepção cotidiana de que a segurança dos moradores é secundarizada em nome da produção mineral. Cada explosão, cada abalo não previsto, cada falha de informação aprofunda o sentimento de vulnerabilidade e deslocamento simbólico.
Os moradores impactados vivem sob a lógica da incerteza: poderão permanecer em suas casas? Terão acesso à água potável? Suas comunidades sobreviverão a mais uma fase de expansão da mineração?
O terrorismo de barragem é, enfim, a realidade silenciosa de um modelo que calcula riscos aceitáveis para proteger investimentos — e não vidas. É a violência institucionalizada que recai sempre sobre os mesmos corpos, os mesmos territórios, perpetuando as marcas da exclusão e da negligência histórica.
Povos tradicionais, para quem a terra é mais do que bem econômico — é identidade, é memória, é ancestralidade — veem seus laços simbólicos desfeitos. Como afirma Boaventura de Sousa Santos, “não há justiça ambiental sem justiça cognitiva”: ignorar a relação espiritual e cultural com a terra é perpetuar uma violência epistêmica que marginaliza modos de vida inteiros.
O terrorismo de barragem convoca a reflexão sobre a ética do risco imposto: filosofia da vida real. Se a vida humana é o centro da ordem jurídica, como tolerar estruturas que impõem aos poucos o risco da morte como condição de existência? Paul Ricoeur, em sua filosofia da responsabilidade, advertia que a dignidade humana exige que não sejamos agentes de nossos atos sem a consciência dos impactos de nossas omissões.
Juridicamente, o ordenamento brasileiro prevê instrumentos de proteção. A Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei nº 12.334/2010) estabelece a obrigação de monitoramento, de transparência nas informações, de planos de emergência e de responsabilização. A Constituição Federal, em seu artigo 225, impõe o dever de proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. A Convenção 169 da OIT reforça o direito à consulta prévia e informada de comunidades tradicionais afetadas.
No entanto, o que se vê é a subversão desses dispositivos: a gestão dos riscos é feita para proteger o empreendimento — e não a vida. As simulações de rompimento e os mapas de inundação, quando divulgados, não traduzem empoderamento das comunidades, mas aprofundam o sentimento de impotência, medo e deslocamento involuntário.
O terrorismo de barragem é, portanto, uma forma de violência ambiental estrutural. E como toda violência estrutural, ele não é um “acidente” da modernidade: é o resultado de escolhas políticas, de relações assimétricas de poder, de um modelo de desenvolvimento que insiste em submeter a dignidade humana ao lucro e à eficiência econômica.
Combater o terrorismo de barragem exige uma reengenharia de direitos. Exige que o princípio da precaução seja aplicado com seriedade. Que a gestão dos riscos seja feita a partir da perspectiva também das comunidades — e não apenas dos interesses corporativos. Que a vida e a dignidade deixem de ser variáveis descartáveis no cálculo econômico.
Enquanto o medo continuar sendo a linguagem dos grandes empreendimentos, não haverá justiça ambiental.
E a sombra das barragens continuará projetando rejeitos sobre a terra, incertezas e medos sobre as pessoas, sofrimento e silêncio sobre vidas que deveriam ser protegidas, não sacrificadas.
