O racismo ambiental é um fenômeno estrutural que ultrapassa as fronteiras do direito ambiental, penetrando nos domínios da justiça social, dos direitos humanos e da própria construção histórica das desigualdades. Ele se manifesta na seleção sistemática de quais territórios e quais corpos serão mais expostos aos riscos e aos danos socioambientais, revelando que a degradação ecológica nunca é neutra — ela carrega cor, classe, origem e história. É, em verdade, um mecanismo que perpetua a desigualdade, invisibiliza corpos e territórios e transforma o meio ambiente em mais uma arena de exclusão.
No Brasil, onde o colonialismo e a escravidão moldaram nossa estrutura social, a manifestação desse fenômeno é ainda mais grave: comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e populações periféricas suportam de maneira desproporcional os impactos da degradação ambiental.
No Brasil, tanto quanto em diversas localidades em todo o mundo, essa dinâmica adquire contornos dramáticos no contexto da mineração. Em Minas Gerais, tragédias como as de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) escancararam ao mundo a vulnerabilidade das populações atingidas: em sua maioria, comunidades de trabalhadores, agricultores, povos tradicionais e populações negras periféricas, que não foram devidamente ouvidas nem protegidas. A contaminação do Rio Doce e a devastação irreparável de bacias hidrográficas inteiras não impactaram igualmente todos os territórios: atingiram, sobretudo, os mais frágeis socialmente.
No Pará, o exemplo se repete em larga escala. A exploração mineral na região de Barcarena, marcada pelo derramamento de resíduos tóxicos pela Hydro Alunorte, afetou diretamente comunidades ribeirinhas e quilombolas. A lógica se perpetua: onde há maior vulnerabilidade política e socioeconômica, há maior permissividade para o dano ambiental.
Em escala internacional, os Estados Unidos da década de 1980 já denunciavam a localização preferencial de depósitos tóxicos em comunidades negras e latinas — o que deu origem à expressão “racismo ambiental”. Hoje, países africanos continuam a receber resíduos perigosos de nações desenvolvidas, em uma transposição contemporânea das dinâmicas coloniais.
Sociologicamente, o racismo ambiental evidencia a perpetuação do “lugar social do risco”: não é a natureza que determina quem sofre o dano, mas a organização desigual da sociedade. Aqueles historicamente privados de voz e poder político são os primeiros a sofrerem o ônus da degradação ambiental — e os últimos a terem acesso às reparações. Nesse ambiente rural, impactado pela atividade minerária, o racismo ambiental evidencia aquilo que Boaventura de Sousa Santos define como uma “epistemologia das ausências”: os modos de vida tradicionais, as relações simbióticas com a terra, os saberes comunitários são sistematicamente desconsiderados nos processos decisórios. O licenciamento ambiental, ainda que juridicamente previsto como instrumento de participação, é muitas vezes uma formalidade burocrática, feita para cumprir prazos e não para garantir voz real.
Não há dúvidas de que a mineração imposta sobre territórios tradicionais gera a ruptura de modos de vida ancestrais, desconectando comunidades de suas práticas de sustento, de espiritualidade e de pertencimento. A terra, para essas populações, é muito mais que um substrato econômico; extrapola uma produção e um valor financeiramente apurável: é espaço de identidade, de memória, de tradicionalidade e de continuidade cultural. A devastação ambiental é, portanto, também devastação simbólica.
É preciso compreender que, para os povos tradicionais, a terra não é mercadoria: é extensão da própria existência; Enrique Leff chama de “racionalidade ambiental” — um modo de pensar que reconhece a interdependência entre cultura, natureza e sociedade. A ruptura desses vínculos gera infinitas perdas materiais, mas, pior que isso, gera traumas identitários e espirituais que dificilmente encontram reparação.
Do ponto de vista filosófico, o racismo ambiental questiona o próprio conceito de justiça: a quem se destina a proteção do meio ambiente? A quem serve o progresso? Sem enfrentar essas perguntas, qualquer discurso sobre desenvolvimento ou sustentabilidade permanece superficial e excludente. Como já refletiu a filosofia de Enrique Leff, a ecologia política revela que as assimetrias ambientais são expressões diretas das assimetrias sociais e econômicas.
Juridicamente, há instrumentos que reconhecem essa realidade — ainda que sua aplicação prática seja limitada. A Convenção 169 da OIT, incorporada ao direito brasileiro, garante o direito à consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre empreendimentos que afetem seus territórios. A Constituição Federal, em seus artigos 225 (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) e 231 (proteção dos direitos indígenas), também consagra princípios que deveriam atuar contra o racismo ambiental. A legislação ambiental brasileira, ao prever audiências públicas nos processos de licenciamento, busca — ainda que de forma imperfeita — democratizar o acesso à decisão.
Entretanto, a prática ainda se distancia do ideal normativo. Os processos de licenciamento ambiental seguem, muitas vezes, roteiros tecnocráticos, onde o “ouvir” comunidades reduz-se a atos formais, sem garantir efetiva participação ou respeito às suas formas de saber.
As reparações, ainda que pontuais e nem sempre satisfatórias, são essenciais, mas há necessidade de uma superação do racismo ambiental: essa realidade requer a transformação das bases estruturais que permitem que determinados territórios e determinadas populações sejam sistematicamente sacrificados em nome do progresso econômico.
Essa transformação passa pela aplicação efetiva de mecanismos de consulta prévia; pela criação de políticas públicas que integrem indicadores de justiça ambiental; pelo fortalecimento da assistência técnica independente; e, sobretudo, pelo reconhecimento dos saberes tradicionais como fontes legítimas de direito.
É dever do Direito, das instituições e da sociedade civil transformar a proteção ambiental em instrumento de justiça, equidade e reparação histórica.
Combater o racismo ambiental é romper o pacto de invisibilidade que naturaliza a destruição de vidas consideradas “menos relevantes”. É compreender que cada barragem rompida, cada rio contaminado, cada floresta devastada sem consulta ou consentimento, é também a expressão de um projeto social que insiste em marginalizar corpos, vozes e territórios.
Enquanto não houver justiça ambiental, a democracia permanecerá incompleta.
E a verdadeira sustentabilidade será apenas um discurso vazio — tão tóxico quanto os rejeitos que varrem as margens dos rios e das vidas esquecidas. Onde há um rio é envenenado, uma floresta devastada ou uma comunidade silenciada, há uma verdadeira e profunda violação da dignidade humana.
E sem dignidade, não há sociedade justa, não há democracia plena, não há futuro sustentável.
